terça-feira, 24 de maio de 2011

"Todos temos culpa pela crise de abastecimento do etanol"

Eduardo Carvalho: falta planejamento ao governo e usinas têm de assumir sua responsabilidade no abastecimento

Antes de mergulhar nos temas que nortearam o pedido de entrevista feito pelo Valor, Eduardo Pereira de Carvalho discorre sobre a velocidade da informação e a ansiedade do mundo moderno. Puxa pela memória, volta ao início da década de 70 e se lembra do dia em que estava no gabinete de Delfim Netto, então ministro da Fazenda, à espera de um documento. Coordenador da assessoria econômica do ministério nessa época de governos militares no Brasil, Carvalho estava ansioso. Não com o papel em si, mas porque ele seria transmitido por telefone. "Era o fax", gesticula. "Foi como um milagre!".

O prólogo pontua a profundidade das mudanças testemunhadas pelo economista nas últimas décadas. O mundo mudou, e não apenas graças ao desenvolvimento de novas tecnologias. As relações sociais, políticas e econômicas mudaram, e o segmento no qual atuou durante décadas, o sucroalcooleiro, hoje também é outro. Aos 73 anos, esforçando-se para conter declarações intempestivas, Carvalho busca no passado explicações sobre as atuais relações do segmento com o governo e a crise de preços do etanol - que, aparentemente, colocou os antigos "parceiros" em rota de colisão.

Presidente por sete anos da Unica, que representa as usinas de açúcar e álcool do Centro-Sul do país, Carvalho foi sucedido por Marcos Jank há três anos, mas continua como conselheiro da entidade. E avisa: não há mocinhos ou bandidos nessa crise. Mesmo amenizadas nos últimos dias pela queda dos preços do etanol nas usinas e nas bombas, divergências afloraram e alimentaram o que usineiros e executivos classificaram como um viés intervencionista do governo já há tempos esquecido.

"[Nesse ponto], vejo semelhanças enormes entre esse governo e o militar do qual participei e assisti", diz, consciente de que pode ser taxado de herege. "Eles estão muito mais ideologicamente próximos do que a sociedade supõe". Para ele, a afirmação traz menos julgamentos do que parece. Implantar um programa de alternativa energética ao petróleo, como foi o Proálcool, só podia ter sido realizado por um regime autoritário, explica o executivo. "O Brasil importava 80% de sua demanda pelo combustível fóssil. O que ia acontecer com a energia em 50 anos era uma preocupação do governo".
"O consumidor estava habituado a usar etanol quando o preço subiu. Ele não muda com centavozinhos"

No entanto, continua, o que aconteceu depois da redemocratização do país é que "planejamento estratégico" virou "palavrão". "Passou a ser coisa de militar", afirma. Mas, depois dos recentes problemas de abastecimento que tanto irritaram a presidente Dilma Rousseff e que renderam ameaças perturbadoras ao segmento, como a taxação das exportações de açúcar, a expressão voltou à baila. "Falta planejamento. Cara feia não produz álcool", afirma Carvalho. "O apagão foi apenas um dos exemplos desse caos. Mas tenha certeza de que outros ficaram escondidos".

Se o governo padece de falta planejamento, diz, as usinas pecam por se esquivar da responsabilidade sobre o abastecimento. Desde o primeiro Proálcool, lembra, os donos de usinas acham que essa responsabilidade é só do governo. "O setor passou por mais de uma crise séria de abastecimento, e isso, lá atrás, quase acabou com o Proálcool. Todos temos culpa pelo que vimos na entressafra: governo, usinas, distribuidoras...".

Mas houve surpresas. No começo da era "flex", lembra, as conversas reservadas com o governo chegavam à conclusão de que não havia motivos para preocupações com o álcool hidratado, pois se o preço subisse o consumidor poderia "girar a chave" e usar gasolina. Mas, na última entressafra, o motorista brasileiro mostrou que o "homo economicus" só existe na cabeça dos economistas. "Somos de carne e osso. O consumidor já estava habituado a usar etanol quando o preço subiu. Ele não muda com 'centavozinhos'. A migração demorou e teve que ter mídia de massa apontando que não estava mais vantajoso abastecer com álcool".

Com as crises de abastecimento nas décadas de 80 e 90, o termo "usineiro" ganhou conotação fortemente negativa. Mais recentemente, as entidades de classe do segmento investiram em marketing para tentar mudar a imagem desse empresário e, entre outras medidas, aboliu a palavra de seu vocabulário. Mas foi só emergir uma nova crise de abastecimento para o termo voltar ser usado pelos críticos como sinônimo de agente não cumpridor de acordos.

Especialistas consultados pelo Valor nos últimos meses foram quase unânimes em afirmar que, quando o assunto é abastecimento, dificilmente as usinas sucroalcooleiras são surpreendidas. E que, no caso específico do etanol, a própria estratégia de correr riscos de carregar estoques para vender na entressafra está baseada no monitoramento constante e minucioso dos dados de produção e consumo. Hoje também à frente de uma consultoria que atua no ramo, Carvalho evita o tema para não entrar em polêmicas que signifiquem abrir o conteúdo das discussões fechadas dos agentes do segmento.

Fácil ou difícil, Carvalho defende a retomada do diálogo entre usinas e governo. O ex-presidente da Unica reconhece, entretanto, que as condições mudaram radicalmente e num espaço de tempo muito curto. Em duas entressafras, no início e em meados do governo Lula, os dois lados sentaram para conversar. "Em uma delas, o PT tinha acabado de assumir. Não sabiam nem onde era o banheiro mas, de cara, o Lula nos chamou para dizer que as usinas não tomariam conhecimento de medidas que as afetassem pelos jornais. Mas avisou que o governo também não queria ser surpreendido".

O governo mudou, mas o segmento também não é o mesmo. "A figura do usineiro é história do passado". A forte entrada de empresas estrangeiras na área alterou o relacionamento no lado privado e deste com o poder público. "Há sete anos, para mobilizar o setor você ligava para o Binho [Rubens Ometto, da Cosan], para o Maurílio [Biaggi, da Moema] e para o Hermelindo [Ruete, da Copersucar]. Hoje, como se faz isso? Quem comanda as multinacionais não é o pessoal que está aqui".
Há sete anos, completa Carvalho, os cinco maiores grupos tinham de 10% a 12% do segmento; hoje eles têm 28% e "amanhã terão 40%". "Qual é o endereço da decisão?", pergunta. Para ele, a falta de um interlocutor com o governo que garanta o cumprimento de acordos não pode significar a renúncia do potencial de produção energética do segmento. "Sabemos que muitos no PT não gostam de estrangeiros. Mas a relação tem que se estreitar".

Essa é a essência da função política, diz Carvalho: mediar interesses, identificar o que é de interesse público. "Político não é para achacar dinheiro de usineiro na hora da campanha e nem para roubar merenda escolar". Mas ele concorda que a recente crise de abastecimento foi desgastante. "Não avisaram o governo. Por outro lado, o produtor está indignado porque a posição do governo prejudica o clima de investimentos - que, continuarão, em sua maioria, vindo de fora".

Nenhum comentário:

Postar um comentário